EU NÃO SEI PORTUGUÊS

17-06-2011 14:46

Tânia Rezende (taferez@hotmail.com)

Os enunciados Eu não sei português e Eu não gosto de português são muito comuns entre os falantes de português brasileiro. Dependendo do contexto, esses enunciados podem se referir ao idioma oficial do Brasil ou à disciplina Língua Portuguesa. Os dois casos merecem atenção, porque são preocupantes. Neste texto, refiro-me ao português apenas como língua oficial do Brasil.

 

Em se tratando da língua oficial da nação brasileira e língua nativa da maior parte dos brasileiros, tais enunciados são preocupantes porque cé muito estranho que um falante nativo de uma língua não saiba essa língua ou não goste dessa língua. Na verdade, o que o brasileiro, em geral, afirma não saber é a norma tida como culta, legitimada pela literatura portuguesa e normatizada pela gramática de português; enfim, a língua da escrita e da escola. 

Afirmações desse tipo traduzem o sentimento do falante em relação à sua língua nativa, de uma autoestima rebaixada com respeito ao seu uso linguístico; e reflete o conflito pretérito entre a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa – língua de cultura, de colonização, língua imposta – e as línguas nacionais – línguas gerais, línguas indígenas, línguas africanas, línguas imigrantes. Esse sentimento foi sendo, historicamente, acentuado pela não ou pela precária escolarização da maior parcela da população e pela distância entre a norma culta e as normas populares de uso da língua oficial,  além da falta de identificação linguística e sociocultural entre a massa falante de português brasileiro, em suas inúmeras variedades regionais, sociais e étnicas, dentre outras, e a norma padrão da língua portuguesa - única, homogênea, etnocêntrica, absolutista e obsoleta.

Somam-se a tais enunciados as afirmações o brasileiro tem medo de português e o brasileiro não sabe nem sua língua. Uma imagem construída  do brasileiro e um valor social, ideológico lhe é atribuído: aquele que não sabe sua língua nativa. Pode-se, então, entrever que, no uso social, a língua portuguesa é tomada como instrumento de dominação e exclusão; de constrangimento e humilhação; ela silencia, assusta, amedronta. No universo dos signos, o uso que o brasileiro faz de sua língua assume uma dimensão ideológica, com um valor semiótico, sendo, por isso, colocada sob a mesma definição geral[1] de língua portuguesa e, muitas vezes, português brasileiro ou português do Brasil.

Podemos extrair das afirmações e sentimentos listados até aqui algumas abstrações, para as quais levantamos alguns questionamentos:

· O brasileiro é falante nativo de português, portanto, esta é, de fato, sua língua materna ou nativa?

· Qual brasileiro? De onde? Falando como? Qual variedade? Por quê? Para quê? Para quem? Em quais circunstâncias?

· Qual português? Falado por quem? Onde? Enfim, que português é falado por quem e onde?

 

O enunciado Eu não sei português não é uma constatação ou uma conclusão diante de um fato. É um sentimento e uma atitude de toda uma coletividade em relação a uma prática sociocultural, isto é, ao uso da língua de dominação, decorrente das condições de uso dessa língua. Reflete ainda um sentimento de inferioridade, decorrente de atitudes inferiorizantes, e de não identificação linguística. A língua portuguesa no Brasil, assim, se ergue como barreira social e como o instrumento, por excelência, de exclusão social. Isso só é possível porque o sentimento do falante em relação ao uso do português no Brasil remete a um tempo-lugar incrustado no imaginário dos brasileiros. É a lembrança de um passado presente, de uma época-tempo-lugar-situações, referentes à formação socio-histórica das variedades linguísticas do português brasileiro, através de processos prenhes de dor, sofrimentos e perdas, rotulados pelos estudiosos da língua simplesmente como degeneração da língua portuguesa ou, de forma mais acadêmica e científica, portanto, oficial, como crioulização da língua portuguesa.

 

A atitude do brasileiro em relação à sua língua nativa pode ser descrita como de amor e ódio, desejo e rejeição, medo e busca, resistência e luta. A língua que aprisiona e oprime é, ao mesmo tempo, o passaporte para a liberdade e o instrumento de empoderamento social.

 

No próximo texto, será abordado o processo de ensino-aprendizagem de língua portuguesa na escola.



[1] Conceitos de BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1995, pp. 31-8.

 

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